Zé da Luz aprendeu a ler e escrever no hospital,
enquanto se recuperava de uma tuberculose. Para ele, a doença abriu as
portas da educação.
Por mais inusitado que pareça. José Alves
da Luz, 80 anos, costuma dizer que uma tuberculose grave foi a sua
maior chance. Aos 18 anos e ainda analfabeto, o diagnóstico da doença
era como uma sentença de morte naquela época. Dois tios dele já tinham
morrido da doença infecto-contagiosa. Ele inclusive foi enviado a um
sanatório em Teresina (PI) com uma receita médica e a extrema unção, o
sacramento católico dedicado aos enfermos graves. Mas José da Luz não só
sobreviveu, como aprendeu a ler, escrever e já aos 35 anos estava
formado como médico radiologista.
Ele seguiu a velha estratégia de traçar
uma meta e segui-la. “Tem sempre um ponto no horizonte que a gente
olha”, teoriza. No caso de José da Luz, ele sempre quis estudar. Quando
criança na região de Abóboras, em Picos, a 307 km de Teresina, só a mãe –
que morreu quando ele tinha apenas 12 anos – e um tio paterno sabiam
ler. “Eu achava aquilo tão bonito, tão bom, que ficava com vontade de
estudar também”.
Mas a realidade era a da lida na roça e
da pobreza no sertão nordestino da década de 1940. Na área em que
morava, nem escola tinha. Quando chegou ao sanatório em Teresina, as
religiosas que administravam o lugar “acharam um completo absurdo alguém
naquela idade ainda não ter sido alfabetizado” e então ele passou a ter
aulas no hospital mesmo com as freiras.
“Se tem uma pessoa que eu gostaria de ter
encontrado novamente na vida para contar tudo o que aconteceu era a
irmã Tereza, que me ensinou a ler e escrever. Mas nunca mais eu vi”,
lamenta.
A identificação com as letras foi rápida e
extrema. Ele não parou mais de estudar. ““Eu fui alfabetizado no mesmo
ano que o Getúlio Vargas se suicidou, para você ter uma ideia”, relata.
De acordo com dados do censo demográfico daquela época, a população
brasileira era formada por cerca de 52 milhões e a taxa de analfabetismo
era da ordem de 52%. José da Luz não era mais um deles, mas tinha muito
ainda que estudar na vida.
Aos 22 anos, mesmo sem nunca ter feito o
primário, conseguiu passar em primeiro lugar na prova para frequentar o
ginásio em Picos. Na época, não era necessário apresentar o histórico
escolar. Com isso ele passou a frequentar uma escola pública onde
pessoas ilustres da cidade davam aula. “Crianças e adultos estudavam na
mesma sala e eu acho que era o mais velho”. Para se manter, ele
trabalhava como cacheiro viajante, “uma mistura de camelô e feirante,
que lá é conhecido como mangaio”. Em um caminhãozinho ele percorria
mais 150 km só para vender produtos.
Quando terminou o ginásio, decidiu ir
sozinho para o Rio de Janeiro. Era o ponto no horizonte que apontava
para lá. Acreditava que assim poderia trabalhar e estudar. Foram nove
dias num ‘pau de arara’, sem descanso e nem direito a tomar banho.
Chegando na cidade, ele não conhecia nada nem ninguém. Não sabia para
onde ir e um taxista da Central do Brasil acabou levando ele para uma
pensão na Cidade Grande. “Era um ambiente ruim, mas eu fiquei na minha e
deu tudo certo”, recorda.
José da Luz conta que chegou a capital
fluminense em 1960, justamente o ano em que a capital federal foi
transferida para Brasília. “Muitos empregos tinham acabado no Rio e eu
era uma mão de obra altamente desqualificada para a cidade. Só tinha
trabalhado na roça. Foram dois meses sem conseguir emprego. A solidão
também era grande”, lembra.
Finalmente conseguiu um emprego na
Navegação Aérea Brasileira, “uma espécie de sucursal da Pan Am” e então
pode prosseguir nos estudos. Logo depois, foi trabalhar numa agência
bancária. “Mas naquela época, se eu contasse no banco que estava
estudando, eles iam me demitir. Então comprei umas apostilas e estudei
tudo sozinho.”
Conseguiu ser aprovado na Escola Federal
de Cirurgia e Medicina do Rio de Janeiro. “Foi uma alegria muito
grande. Acho que fiquei um mês sem acreditar. Eu sempre enxerguei muito
longe na vida. Isso causa sofrimento, sabe? Sonhar tem um preço”,
reconhece José da Luz, em um dos raros momentos da conversa em que
demostra ter passado dificuldade. Isto porque para ele não dá pra perder
tempo reclamando.
A formatura foi em 1969 e ele se casou
com Aurinha em 1970. No mesmo ano que o Doca Estêvão, pai de José da Luz
e grande incentivador, foi ao Rio.
“Mas o meu destino é esse mesmo: começar
tudo de novo”, aponta. Há 43 anos, José da Luz se mudou para Ourinhos,
no interior de São Paulo. “Decidi me mudar da cidade grande. Tinha uma
família enorme que queria trazer para estudar e trabalhar”, justifica.
Em Ourinhos, criou uma clínica de
radiologia com exames. Está sempre estudando e participando de
congressos. Foi lá também onde nasceram seus três filhos, todos
formados, nenhum deles em medicina. “Meus filhos são muito mais
inteligentes do que eu. Cada um buscou o seu caminho”, exalta o médico,
dando um sorriso.
Se ele tem um conselho para dar? “A gente
precisa acreditar na gente e também nas pessoas. A maioria das pessoas é
boa, até porque se não fosse assim, o mundo não andava, não é mesmo?”,
indaga ele, sem ter dúvida da resposta.
Agora ele planeja escrever o terceiro
livro – já publicou um sobre sua trajetória e um segundo de crônicas.
Também pretende visitar neste ano a madrasta em Picos – mãe de vários de
seus 18 irmãos – para as comemorações dos 92 anos. Para ele, o
importante é ir devagar e sempre.
Fonte: IG
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